O Menino Dançarino, de Camila Scherma

domingo, 3 de julho de 2011


O MENINO

Os pés de milho balançavam ao ritmo do vento. Silêncio. Os passos do menino eram ouvidos já agora e o som deles ia aumentando e ficando mais próximos. Com os braços curtos e finos afastava as folhas e os olhos ávidos checavam ainda pela última vez se não havia ninguém por perto. Já entre os pés de milho, as folhas iam se fechando atrás do menino, que agora se preparava para o espetáculo. Uma espiga servia-lhe de microfone, a plateia era composta pelos pés de milho, únicos espectadores de espetáculos únicos. A voz do menino se soltava da garganta e ecoava o desejo de ser artista. Os braços se levantavam, os pés giravam, a cabeça para trás, para cima, para um lado, para outro. O corpo rodopiava, chacoalhava-se, corria entre as plantas-plateia no milharal. Cantava. Dançava. Interpretava. E no meio do espetáculo os sonhos se alimentavam daquela seiva de menino que não tem medo de se ver outro, como um homem das artes. Sonhava. No fim do espetáculo, os pezinhos descalços do menino iam pisando a terra satisfeitos do show que haviam ajudado a apresentar. As mãos agora já não seguravam a espiga-microfone para dar conta de afastar do rosto sonhador as folhas cortantes. O milharal agora ficava para trás, escondendo o palco que abrigava os momentos de cantor, ator e bailarino do menino. E o cotidiano pacato desse menino ia conhecendo minutos do extraordinário. Um extraordinário que rompia esse cotidiano ao mesmo tempo em que projetava um futuro para o protagonista dos espetáculos aos pés de milho.

O menino já não mora mais ao lado de sua mais fiel plateia. O milharal já não é mais vizinho nem espectador do menino. Mas a semente do artista ainda conserva em si a força para germinar e crescer no homem dos palcos e das artes. Os palcos agora têm cortinas vermelhas. Os microfones agora já não têm mais grãos amarelos e propagam a voz do menino a uma plateia diversa da dos tempos de miúdo. Os braços ainda se levantam e giram e balançam e alcançam sonhos cada vez mais concretos. A cabeça ainda sobe, desce, gira, pensa, sonha. Os olhos abrem suas cortinas e revelam o brilho que reflete a satisfação dos pés que agora pisam outros palcos, outras estradas, outras terras. A boca propaga um jeito de ver o mundo como muita gente não vê. Os ouvidos ouvem vozes como aquelas do filósofo russo que em tudo ouvia vozes. E o menino dança, rodopia, pula, corre, ri, olha e vê. A plateia aplaude, se levanta, aplaude, aplaude e vê. Vê o menino. O menino que ainda dança. Dança com a vida. O extraordinário agora não rompe só com o cotidiano do menino em seu palco secreto. O extraordinário agora vai aparecendo no cotidiano daquela plateia que participa dos sonhos do menino. Co cotidiano e o extraordinário. Um extraordinário cotidiano de lutas, de batalhas, de trabalho, de derrotas. Um extraordinário cotidiano de busca por forças que sejam capazes de constituir o menino.

Bem longe desses novos palcos, nessas terras distantes e diversas, o milharal repousa no silêncio. Sem som, sem dança, sem os sonhos. Mas o primeiro palco do menino continua lá. A plateia do menino continua lá, em pé. Pronta para os aplausos. Mas... e o menino? O menino? ... Eis o nosso menino: é homem já. E não é que ele voltou doutor?



Sobre a autora: Camila Caracelli Scherma. É doutoranda em Linguística pela UFSCar - Linguagem e Discurso. Professora de Ensino Fundamental na Cidade de Leme/SP.

Sobre o Menino: O crônica poética acima é sobre Hélio Márcio Pajeú, também doutorando pelo programa da UFSCar. Pernambucano. Ator. Dançarino. Que quando pequeno ao sair do sertão prometeu ao pai voltar doutor para casa. E sabemos de perto que os passos que anda dando é de disciplina, mas promotores de leveza e sorrisos aos que com ele convivem.

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